É um convite para entrarem no imaginário de Mário Vitória, numa viagem utópica que percorre a sua arte. Uma viagem que tem várias paragens. Nela batemos à porta do surrealismo e entramos num mundo fantasiado, do sonho, onde vivem coisas improváveis e irreais, ao passo que nos deixamos contaminar por outros movimentos e expressões da arte, no seu estado mais puro. Foi assim que nos sentimos quando nos foram abertas as portas do seu atelier, no Porto. Ali falamos do âmago da sua arte e de todas as coisas que nela cabem.
Gostaríamos de começar esta entrevista por perguntar: como define a sua arte?
Há várias gavetas e é difícil de a definir logo de imediato. Muitas vezes estou comprometido com causas sociais. O meu trabalho tem vindo a ser assumido nessa lógica porque trabalho muito sobre a dignidade humana. Obviamente, estou ligado a essas lutas e a formas de resistência. Nos últimos anos, desde 2010, tenho estado focado no fator de migração. Nunca, em outra altura da humanidade, se falou tanto em perseguições, na necessidade de fugir e, por isso, tenho trabalhado muitas peças sobre o tema. Há outros momentos em que estou mais descomprometido, até talvez pela porta do surrealismo, sem o foco tão delimitado nos conteúdos do que vou tratar. Por essa razão é que vou muitas vezes à poesia não interventiva ou pinto pelo simples ato de prazer. Se eu tivesse de definir o meu trabalho diria que é sobre o âmago humano, cabe muita coisa aqui, dentro desta temática urgente está ainda muita matéria por desenvolver.
A sua obra insere-se então numa corrente mais livre?
Sim. Como o espetador vê figuras a voar, monstros ou figuras estranhas na minha obra, pela tradição acumulada, a tendência é assumir a minha obra como surrealismo ou até dadaísmo, naquelas peças mais esquisitas. Mas é claro que esses movimentos deixaram muitas portas abertas. Temos de recordar que o surrealismo e o dadaísmo foram das primeiras formas de nós contactarmos com as atrocidades da guerra. Estão mais ligados à parte íntima de cada um e até ao sonho, por isso é que as pessoas apelidam de surrealismo algumas partes do meu trabalho, mas de facto não tem nada a ver. Até por essa parte de maior intervenção poderíamos ir ao neorrealismo, pelas causas sociais e movimentos que são retratados, mas não consigo encaixar as minhas obras em lado nenhum. É um tutti-frutti autêntico! (risos)

Existe alguma época histórica, alguma temática que sirva de inspiração para o grosso das suas obras?
O meu trabalho retrata a História da humanidade e a humanidade repete-se. Eu posso basear-me em momentos históricos já vividos, mas o momento que estamos a viver é cheio de ingredientes e parece que se está a repetir. Temos mais meios e outras técnicas, mas a História do homem é muito baseada nas suas fraquezas e nas suas vitórias. Claro que utilizo uma imagem dentro do ramo das artes que é figurativa, tem algumas proporções e regras, mas também desmancho essas mesmas regras do jogo. Mas não tenho nenhuma ligação específica.
Em que é que se inspira então, essencialmente?
No meu dia a dia. Há dias em que estamos completamente desligados do mundo, não conseguimos ligar o telejornal sequer, mas há outros dias em que estamos mais interventivos e achamos que há qualquer coisa que nos puxa para a maior das atenções. E eu inspiro-me nos inequívocos do dia a dia, nas causas maiores. É por isso que a minha obra consegue reunir tantas coisas: acaba por estar misturada com coisas descomprometidas e está altamente convocada para coisas muito urgentes.
A maioria das suas obras remete para a mitologia, domínios imagináveis e quase intangíveis. Não são obras de perceção fácil e rápida. O objetivo é, também esse, levar as pessoas a olhar de uma forma mais profunda para entender a mensagem por detrás de uma pintura? Considera essa mesma interpretação fácil?
Na maioria das vezes eu pensava que sim, que as pessoas olhavam para as minhas obras e percebiam, porque eu deixo sempre o ponto de partida para a leitura. E como eu trabalho coisas do nosso quotidiano, seja o mundo da Disney, as capas de jornais, os assuntos mais mediáticos, eu pensava que as pessoas já tinham esse código de acesso ao quadro, mas a verdade é que a obra nunca nos pertence e muitas das vezes as pessoas fazem leituras dos nossos trabalhos que não têm nada a ver com aquilo que eu pensei. E tudo bem, às vezes até me reorganizo em pensamento e é engraçado confrontar essas leituras com aquelas que eu imaginei em atelier. É muito interessante.

Vemos que algumas das suas obras ultrapassam a tela. Em que contexto surge essa necessidade de ultrapassar a delimitação de uma tela?
Faz parte do dia a dia do atelier. Eu estou aqui imbuído, venho da variante da pintura e do desenho, mas como eu manipulo e desenho tantas personagens, a volumetria é quase inevitável. A volumetria faz parte das nossas vidas, está mesmo iminente. Vemos escultores contemporâneos que fazem peças que nos “assaltam” e é fantástico estar a assistir à volumetria. A pintura também é volumétrica, se entendermos as escalas e levarmos isto para outro campo. Essa fronteira acaba por ser ténue. As nossas vidas mudam, as nossas casas mudam, os nossos territórios mudam, é normal e quase inevitável ir à escultura ou à instalação.
Era uma necessidade, enquanto artista, explorar essas mesmas artes?
Sim. Eu vou tentando, com o tempo que me é concebido em vida, ir a muitos lados. Há muitas áreas que eu gostaria de explorar e de me dedicar com mais tempo. Áreas como o vídeo, a cerâmica, entre tantas outras. É normal que um dia essas expressões surjam, mas a volumetria tem muito a ver com algumas personagens que saltam dos meus quadros.
Em praticamente todas as obras vemos um símbolo que é comum. Trata-se de um rosto que faz parte da obra e é readaptado à mesma. Este mesmo rosto tem algum simbolismo?
Eu chamo-lhe “a criatura”. É uma figura engraçada por dois lados. É sarcástica e permite-me conectar com assuntos delicados e difíceis, mas como vem desse ambiente de boneco a coisa é aligeirada, é como um ponto de entrada. Por outro lado, ela é oca de conteúdo e fere-nos, porque vemos uma personagem com membros, que se movimenta e toma ações, mas não é uma máscara. Vemos que é uma figura sem conteúdo e isso assusta-nos. Há um vazio de interior. Esta personagem é uma ferramenta que me permite tocar nesses conteúdos difíceis e, ao mesmo tempo, alertar-nos para o nosso vazio de conteúdo, porque poderemos cair nele.
Em Naturezas Assassinas vemos em todas as obras um cruzamento de ideologias, tempos históricos e correntes artísticas. Temos os retratos das míticas mesas com uma abundância de elementos decorativos, dos quais sobressaem (quase sem darmos conta) personagens que nos são de imediato conhecidas. O que é que representam?
Vamos viajar ao século XVII holandês, naquela extensão das vanitas ou das naturezas mortas e aquele ambiente virtuoso da boa pintura, mas também onde se camuflavam imensas mensagens. Muitas vezes, vemos aquele aspeto banal da pintura que está presa no tempo, mas que sabemos que irá encontrar a morte, porque os frutos apodrecem, as flores murcham. Isso sempre me agradou, sobretudo aquela parte em que os significados e as mensagens estavam escondidas. Aqui é tudo explícito. Eu contamino estas naturezas mortas com estes bonecos que se matam uns aos outros. A referência é óbvia a este mundo de poder em que se matam pessoas como se fossem bonecos ou simples brincadeiras de crianças. Surgem bonecos totalmente invasores, da nossa infância e, ainda por cima, têm uma vertente para uma destruição que acaba por cair no lúdico. Isso é a perversidade e o terrorífico dos nossos dias, mas também a gigante caricatura de que não há mais filtros para pensar a maluqueira que estamos a assistir e isso, sim, é um surrealismo evidente da humanidade.

As suas obras remetem para algum sarcasmo e crítica. A arte existe, também, com esse intuito, de dar voz a determinados problemas que a sociedade deveria ter em conta. Considera que através da sua arte as pessoas podem adquirir outras visões do mundo e interpretarem a realidade de outra forma?
O meu papel neste momento é esse. É a minha missão e a que eu encarei para o meu trabalho. A arte tem de estar nesse caminho da intervenção social e tem sempre que alertar, mesmo que num momento mais de introspeção, mais pessoal. Eu acho que os artistas devem estar preocupados com uma atitude cívica, ainda mais nos tempos que correm, em que é urgente termos outra postura perante o degradar de muitas coisas. Porque senão perdemos o pouco de bom que temos e a arte pode contribuir para esse lado. Eu fico muito feliz quando as pessoas torcem o nariz ao ver os meus quadros porque são fortes ou terroríficos, mas depois noto que as pessoas que se debruçam nos quadros são pessoas realmente diferentes, que abrandam e contribuem para esse movimento cívico, no sentido ecológico das coisas, de preservar, e de nos questionarmos sobre estas questões das guerras e das intrigas. Quando eu faço aqueles enunciados de elogio, como o amor e a amizade, é engraçado ver, também, esse feedback das pessoas e ver que a arte é uma ferramenta muito útil.
Considera que a sua obra é aceite de igual forma por toda a gente?
Eu acho que não. Porque a minha arte tem as tais gavetas, desde as Naturezas Assassinas, o Circo Humano, os Desenhos Intencionais e, depois, os objetos e as esculturas. É engraçado que há pessoas que são fervorosas por todos esses ramos e percebem que é a mesma pessoa, que não há aqui pseudónimos e os conteúdos casam-se.
Tenho pessoas que fogem e acredito que jamais teriam um quadro meu em casa, como há pessoas que se debruçam mais sobre os quadros e estão mais ligadas aos conteúdos que enunciei, porque acabam por gostar e entender o significado das figuras. Eu estou a trabalhar muito para essas pessoas que apreciam, mas também para ferir as que fogem disso. Se eu as conseguir prender uns cinco minutos no quadro, eu acho que vou ter resultados positivos.